O intelectual e líder revolucionário Vladimir Lenin se tornou um dos maiores símbolos do comunismo.

Quando a cortina de ferro caiu, centenas de estátuas dele foram derrubadas em demonstrações que marcaram o fim dos regimes comunistas na esfera de influência soviética.

Alyson Nonato buscou entender uma das figuras mais polêmicas do século passado para além das narrativas na obra Lênin: O Homem Por trás do Mito.

O livro foi lançado pela editora Caravelas juntamente com Os Anos da Fome e Quando a Foice Balança, também sobre as atrocidades cometidas pelas ditaduras comunistas.

Nonato concedeu uma entrevista sobre a obra e seu trabalho como biógrafo de Lênin à Brasil Paralelo. Veja a conversa completa abaixo: 

De onde surgiu a ideia de escrever uma biografia sobre Lênin?

“O Brasil dos últimos anos tem flertado com muitas práticas autoritárias e a liberdade tem sido reduzida constantemente. Ao mesmo tempo, eu vinha estudando a União Soviética há muitos anos e notando semelhanças de certas estratégias adotadas na Revolução Russa e em democracias ocidentais, como o Brasil. O que poucos sabem é que essas estratégias estão mais ligadas ao pensamento de Lênin do que ao de Marx. Isso me levou a mergulhar nos estudos sobre o marxismo-leninismo. Lênin não era um marxista ortodoxo, ele adaptou muitas das teorias de Marx. Pode-se dizer que Lênin radicalizou o marxismo a tal ponto que muitos marxistas do seu tempo o acusaram de ser um jacobino, mais próximo de Robespierre (o líder do período de terror da Revolução Francesa) do que de Marx.

Foi Lênin quem estabeleceu as principais instituições repressoras do regime soviético, tais como os gulags (campos de trabalhos forçados) e a Cheká (polícia política que deu origem à KGB). Lênin foi o arquiteto do primeiro Estado totalitário da história e foram suas táticas que deram as bases estruturais (não ideológicas) a todos os Estados  totalitários que surgiriam mais tarde, como o fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão, o maoísmo, o castrismo, etc.

Daí veio a ideia de escrever uma biografia que mostrasse como Lênin construiu uma ideologia tão original e catastrófica para o mundo e ainda conseguiu entrar para a história como um homem que tinha boas intenções com seu socialismo terrorista. O livro faz uma desconstrução dos mitos elaborados pela propaganda soviética que conseguiu tornar Lênin o exemplo do homem ideal, um herói que teria vivido com o único propósito de salvar o povo de todo o mal na Terra: a exploração, a pobreza e a fome. Lênin talvez tenha sido um dos maiores exemplos da sentença bíblica ‘lobo em pele de cordeiro’.”

Qual fato mais te surpreendeu sobre a vida de Lênin?

“Eu não diria que foi apenas um fato surpreendente. O livro conta alguns fatos que eu não esperava encontrar. Um deles foi a constatação de que Lênin nasceu em uma família que fazia parte do 1% mais rico da Rússia de seu tempo. A maioria das biografias sobre Lênin não entra em detalhes sobre a renda de sua família. Em geral, ele é apresentado como oriundo de uma família de classe média. Alguns poucos autores arriscam dizer que era uma família de classe média alta. Mas mesmo essa afirmação está longe da verdade. Embora o pai de Lênin tenha começado a vida como professor, logo assumiu cargos administrativos no governo e chegou ao posto de diretor de educação de sua província. O equivalente, hoje, a um Secretário de Educação do Estado de São Paulo, por exemplo. Este cargo lhe garantiu o título de nobreza hereditária (que foi transferida a Lênin e seus irmãos) e uma renda mais alta que a maioria dos altos funcionários públicos do regime czarista. A mãe de Lênin também tinha uma renda alta como proprietária de terras, o que garantiu a sua família uma vida de muito conforto e tranquilidade financeira, mesmo após a morte do marido. Tanto Lênin como suas irmãs viveram alguns anos na Europa sendo financiados pela mãe, sem qualquer preocupação com gastos — embora seja justo dizer que eles não eram esbanjadores.

É claro que ter nascido em uma família rica não é um demérito em si. Mas é relevante porque mostra o poder de persuasão da propaganda soviética em omitir este fato a ponto de a maioria das biografias até hoje não terem se dado conta da extensão da riqueza de sua família. Isso explica porque Lênin foi uma criança mimada e um adolescente que demonstrou, em alguns casos, certo preconceito contra pobres. Além disso, ele viveu a maior parte de sua vida como um kulak, que usufruiu das rendas das terras da mãe sem trabalhar, na maior parte do tempo.”

A narrativa de que Lênin era um homem de boas intenções e que a revolução foi deturpada por Stálin está de acordo com os fatos históricos?

“De maneira alguma. Lênin foi o pai do stalinismo. A diferença da fama de Stálin e de Lênin é que o primeiro passou a ser tratado pela propaganda soviética (a partir de 1956) como um tirano criminoso, enquanto o segundo (Lênin) sempre foi apresentado como um profeta do socialismo, uma espécie de Cristo redentor do materialismo histórico. O fato de Lênin ter governado por apenas 5 anos (1917-1922) também contribuiu para que seus crimes fossem menores em extensão do que os de Stalin, que governou por cerca de 26 anos (1928-1953).  Mas  foi Lênin quem criou os expurgos dentro do partido, quem estabeleceu a censura absoluta e criou a máquina de propaganda soviética que não incluía apenas jornalistas, mas também historiadores, filósofos, cientistas, pintores, autores de livros infantis e professores do ensino básico ao universitário.

Todos esses princípios que levaram à tragédia do regime stalinista foram introduzidos no socialismo mundial por Lênin, por meio de suas leituras de revolucionários radicais russos do século XIX. Alguns desse pensadores eram conhecidos como jacobinos russos, mas acabaram desaparecendo da história do socialismo. Foram eles que formularam conceitos como o terror de Estado contra a Igreja Ortodoxa e contra a própria população. A Guerra Civil Russa, por exemplo, não foi provocada por monarquistas e burgueses que tentavam resistir ao socialismo, como a propaganda soviética contou. Foi provocada pelos próprios bolcheviques que desejavam iniciar um extermínio em massa das populações russas, para acabar com as tradições religiosas, com a propriedade privada no campo, com a oposição socialista e com a família tradicional. Os primeiros exércitos brancos foram formados por outros partidos socialistas russos que compartilhavam o poder antes do golpe de Outubro, no governo provisório de Kerensky, que havia sido formado após a revolução de fevereiro de 1917.”

Quais as principais dificuldades de escrever uma obra sobre uma personalidade polêmica, como Lênin?

A biografia de Lênin é um terreno pantanoso. Toda sua vida está encharcada de mentiras criadas pelo regime, por seus camaradas bolcheviques ou pelo próprio Lênin. Uma das dificuldades é que a maior parte das fontes primárias foi escrita por conhecidos e familiares que estavam sujeitos à censura prévia do regime. É claro que existem documentos secretos que foram desclassificados (tornados públicos) depois do fim da União Soviética e trouxeram novas perspectivas sobre Lênin, mas estes documentos são poucos. É preciso ter muita atenção porque existem muitas informações conflitantes e é sempre necessário recorrer a diferentes fontes para comparar os dados existentes antes de tirar conclusões.

Um exemplo disso é a rivalidade entre os bolcheviques e os mencheviques dentro do Partido Operário Social Democrata Russo. Lênin acusava os mencheviques de serem de direita, mas na verdade ele criou uma corrente jacobina dentro do partido, que era menos marxista do que os mencheviques. Além disso, eram pouquíssimos os membros do partido que concordavam com o radicalismo de Lênin. Muitos daqueles que Lênin chamou de bolcheviques no início deste conflito, na verdade não faziam parte de um grupo coeso de militantes bolcheviques. Eles só tinham votado a favor de algumas propostas de Lênin em alguma reunião do partido. Mas assim que votavam a favor da proposta de alguma outra liderança, que não Lênin, o líder bolchevique os acusava de mencheviques. Na prática, nunca houve de fato um racha político dentro do partido. O único membro separatista era Lênin, porque ele queria ser o único líder de todo o partido. Em alguns momentos, Lênin teve mais apoiadores a ponto de justificar que este grupo fosse visto como uma ala dentro do partido, mas poucas vezes esse grupo passou de 15 membros num partido com mais de 200.

Existem outros episódios da vida de Lênin que estão repletos de idealizações ou de conclusões inconsistentes. Isso dificultou muito a escrita do livro e me fez reescrever muitos trechos que antes pareciam concluídos.”

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Sua opinião pessoal sobre ele mudou após o livro? O que mudou?

“Sim, completamente. Antes, eu sabia da importância de Lênin como intelectual dentro do socialismo, mas não sabia da extensão dela. Agora, acredito que Lênin pode ser considerado um intelectual da mesma relevância de Marx para o socialismo. De fato, a maioria dos marxistas de hoje são mais leninistas do que marxistas e talvez nem saibam disso.

É importante explicar que Marx era contrário às ideias de muitos revolucionários radicais russos do século XIX, que influenciaram o pensamento de Lênin. Da mesma forma, esses radicais discordavam fortemente de Marx. Apesar disso, Lênin conseguiu fundir essas duas correntes quase opostas. As ideias dos radicais russos sobreviveram por meio de Lênin e direcionaram o modelo violento de Estado Soviético. Foi este modelo que prevaleceu em Cuba, Coreia do Norte, Vietnã, Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, entre outros países. É possível dizer que as ideias de Lênin foram mais longe do que as de Marx. Nos últimos 30 anos, por exemplo, a China abandonou a economia marxista, mas manteve as estruturas repressivas de poder criadas por Lênin. O Estado comunista chinês de hoje é mais leninista do que marxista.

O socialismo democrático ocidental também sofreu influência das ideias de Lênin. Embora a esquerda progressista tenha uma ideologia diferente do comunismo de Lênin, as táticas para destruir a família, a religião e as tradições são mais leninistas do que marxistas.  Por isso, para compreender o socialismo de hoje é tão importante conhecer as reais ideias de Lênin, que na prática eram diferentes do que a propaganda soviética difundiu.”

Conheça mais sobre a trajetória de Lênin e da ideologia que ele defendia com o segundo episódio do épico História do Comunismo. Assista completo abaixo:

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